Encontramos os livros em bibliotecas e livrarias. Ali, devido ao seu enorme número, assustam o néofito. Reunidos num só local, os livros assemelham-se a um exército ameaçador a perfilar-se a toda a volta, e todos eles parecem clamar por ser lidos. No seu meio, um leitor pouco ou nada regular sente-se como um bêbado no meio de uma manada de zebras em pleno galope. Tudo se lhe confunde perante os olhos. A quantidade de livros intimida-o e recorda-o de tudo quanto ainda não sabe. Estas toneladas de conhecimento são a medida da sua ignorância. Escolher entre estes milhares de volumes um único, abri-lo e começar a lê-lo parece-lhe um empreendimento por demais ridículo. Recorda-lhe a tentativa de esvaziar um oceano com um dedal. A simples visão de uma única prateleira desmoraliza-o.
Depois de o visitante ter deixado que esta impressão actuasse sobre a sua mente, ele está profundamente deprimido. Nesse fatídico momento tem uma alucinação: na sua mente, surge-lhe a imagem do café como o local onde se refugiam os náufragos que correm o perigo de se afundarem no mar dos livros e, pouco antes de morrer asfixiado, abandona a biblioteca, não sem se admirar, ao olhar para trás das costas, que os aborígenes continuam a tratar dos seus afazeres com tanta tranquilidade, que até parece não repararem no ambiente hostil em que se encontram inseridos. É algo assim que espera o aventureiro que pela primeira vez ponha o seu pé numa biblioteca.
Esta sensação é certamente natural, mas perfeitamente escusada. Nenhum utilizador experiente de bibliotecas sente uma biblioteca desta forma. Nem se apercebe do enorme número dos livros que o rodeiam. Apenas vê o livro que utiliza naquele momento, e talvez mais alguns da mesma família. Os outros vê tanto ou tão pouco como o jovem que se dirige a um encontro com uma rapariga se apercebe da quantidade de pessoas que passa ao seu lado na avenida. Um verdadeiro utilizador de bibliotecas é como um amante: para ele apenas existe aquele livro que de momento se encontra a ler, e se ainda está à procura, também não pensa na quantidade mas sim naquele livro único que algures o espera. De facto, tende para a monogamia em série, e cada livro é um companheiro que o acompanha ao longo de uma parte da sua leitura.
Se as livrarias e bibliotecas ainda a/o intimidarem, pense primeiro num assunto sobre o qual queira informar-se: com esta questão resolvida, pode ignorar quase todos os livros como irrelevante e concentrar a sua atenção nalguns poucos. Este exercício dá-lhe orientação, protegendo-o de sensações de impotência, cria uma impressão de determinação e fá-lo parecer um entendido na matéria e um experiente utilizador de bibliotecas. Com um determinado assunto na cabeça, até podemos perguntar à bibliotecária: “onde tem a literatura sobre as aves da Patagónia?” Agora a bola está no campo dela. Ou, se os funcionários da biblioteca a/o importunar antes de saber o que procura perguntando: “Procura algo em particular?”, podemos responder: “Onde encontro os trabalhos sobre a divulgação do relógio de bolso no segundo terço do século XIX?” Isto deverá chegar para os neutralizar. Depois teremos tempo de sobra para nos orientarmos com toda a tranquilidade.
SCHWANITZ, Dietrich – Cultura: tudo o que é preciso saber.
Lisboa : Publicações Dom Quixote, 2004. p. 456-457.
Depois de o visitante ter deixado que esta impressão actuasse sobre a sua mente, ele está profundamente deprimido. Nesse fatídico momento tem uma alucinação: na sua mente, surge-lhe a imagem do café como o local onde se refugiam os náufragos que correm o perigo de se afundarem no mar dos livros e, pouco antes de morrer asfixiado, abandona a biblioteca, não sem se admirar, ao olhar para trás das costas, que os aborígenes continuam a tratar dos seus afazeres com tanta tranquilidade, que até parece não repararem no ambiente hostil em que se encontram inseridos. É algo assim que espera o aventureiro que pela primeira vez ponha o seu pé numa biblioteca.
Esta sensação é certamente natural, mas perfeitamente escusada. Nenhum utilizador experiente de bibliotecas sente uma biblioteca desta forma. Nem se apercebe do enorme número dos livros que o rodeiam. Apenas vê o livro que utiliza naquele momento, e talvez mais alguns da mesma família. Os outros vê tanto ou tão pouco como o jovem que se dirige a um encontro com uma rapariga se apercebe da quantidade de pessoas que passa ao seu lado na avenida. Um verdadeiro utilizador de bibliotecas é como um amante: para ele apenas existe aquele livro que de momento se encontra a ler, e se ainda está à procura, também não pensa na quantidade mas sim naquele livro único que algures o espera. De facto, tende para a monogamia em série, e cada livro é um companheiro que o acompanha ao longo de uma parte da sua leitura.
Se as livrarias e bibliotecas ainda a/o intimidarem, pense primeiro num assunto sobre o qual queira informar-se: com esta questão resolvida, pode ignorar quase todos os livros como irrelevante e concentrar a sua atenção nalguns poucos. Este exercício dá-lhe orientação, protegendo-o de sensações de impotência, cria uma impressão de determinação e fá-lo parecer um entendido na matéria e um experiente utilizador de bibliotecas. Com um determinado assunto na cabeça, até podemos perguntar à bibliotecária: “onde tem a literatura sobre as aves da Patagónia?” Agora a bola está no campo dela. Ou, se os funcionários da biblioteca a/o importunar antes de saber o que procura perguntando: “Procura algo em particular?”, podemos responder: “Onde encontro os trabalhos sobre a divulgação do relógio de bolso no segundo terço do século XIX?” Isto deverá chegar para os neutralizar. Depois teremos tempo de sobra para nos orientarmos com toda a tranquilidade.
SCHWANITZ, Dietrich – Cultura: tudo o que é preciso saber.
Lisboa : Publicações Dom Quixote, 2004. p. 456-457.
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